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quinta-feira, fevereiro 12, 2015


ARQUIVOS EXPRESSO
“Como matámos Humberto Delgado”
Rosa Casaco, o chefe da brigada da PIDE que, faz agora 50 anos, assassinou Humberto Delgado, que em 1958 tinha desafiado o regime ao candidatar-se à eleição presidencial, contou ao Expresso a sua versão da morte do “general sem medo”. Republicamos agora, editado, o respetivo artigo, que foi publicado originalmente na Revista de 14 de fevereiro de 1998. Rosa Casaco morreu em 2006, aos 91 anos
TEXTO JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA
António Rosa Casaco chefiou a brigada da PIDE que assassinou o general Humberto Delgado, no dia 13 de fevereiro de 1965, perto de Badajoz. Fugido do país depois do 25 de abril, foi julgado à revelia e condenado a oito anos de prisão. Em 1998, à beira de completar 83 anos, o ex-inspector da polícia política, que vivia no Brasil sob falsa identidade, quebrou o silêncio a que sempre se tinha remetido e contou ao Expresso a sua versão sobre o mais importante assassínio cometido pelo regime salazarista.
Assumiu que a cilada fatal foi montada pela PIDE, confirmou que o assassino foi Casimiro Monteiro, mas garantiu - contrariando o acórdão do Tribunal - que Arajaryr Campos, a secretária do general, foi morta por Agostinho Tienza.
A “Operação Outono” - nome de código da armadilha montada contra Humberto Delgado - começou a ser delineada “na sequência da tentativa de assalto ao quartel de Beja”, explica António Rosa Casaco. Realizado no primeiro dia de 1962, o golpe de Beja estava concebido para ser liderado pelo “general sem medo”, que conseguira iludir a vigilância da polícia e entrara em território nacional disfarçado com um bigode postiço.
O assalto frustrou-se, Delgado escapou-se, mas o estado-maior da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) resolveu que, para grandes males, grandes remédios. Foi nessa altura que Barbieri Cardoso, cérebro e estratego da polícia, “decidiu estudar o modo de neutralizar as atividades de caráter político” do general, “designadamente as que assumiam formas violentas de assalto ao poder constituído e que beneficiavam os sectores mais à esquerda da Oposição” .
Uma ‘toupeira’ junto do general
Um primeiro passo foi “a introdução de uma ou mais 'toupeiras' na “entourage” do general, capazes de ganharem a sua confiança, “de modo a permitir a deteção de todos os seus movimentos e das atividades revolucionárias que congeminava”. O próprio Barbieri se encarregou de procurar a pessoa indicada. Subdirector-geral desde abril de 1962, Agostinho Barbieri de Figueiredo Batista Cardoso ingressara na polícia, como inspetor, em 1948, vindo da GNR.
Nascido em Lisboa em 1907, mas de ascendência italiana, Barbieri “mantinha contactos regulares da mais diversa natureza com personalidades italianas da direita e extrema-direita”. Entre elas, contavam-se Ernesto Bisogno, um médico com clínica em Roma, e Pascoale Pascuelino, “ex-oficial do exército fascista que fugira de um campo de concentração na Índia e atingira Diu”. Cunhado do inspector Cunha Passo, Pascuelino era tradutor da PIDE, valendo-se dos seus impressionantes dotes linguísticos, já que “falava 21 línguas e dialetos diferentes”.
Duas viagens a Roma
Pascuelino e Bisogno detetaram em Roma a presença de um cidadão português, Mário Alexandre de Carvalho, “que alegava ser oposicionista e refugiado político e que privava com Delgado, sendo, aparentemente, pessoa da sua estrita confiança”. Carvalho, um lisboeta da freguesia dos Anjos, nascido em 1912, residia em Itália há um punhado de anos e possuía um estranho e sinuoso currículo. No prolongado e paciente trabalho de aliciamento de Mário de Carvalho envolveu-se o próprio Barbieri, que “efectuou algumas viagens a Roma, sozinho”, bem como Pereira de Carvalho, o diretor dos chamados Serviços Reservados. Nascido na Figueira da Foz em 1920, Álvaro Augusto das Neves Pereira de Carvalho entrara para a PIDE em 1956, como inspetor, e era considerado, com propriedade, o n° 3 da hierarquia.
Inspector desde 1962, Rosa Casaco era um dos mais experimentados e eficientes operacionais da polícia, para onde entrara em 1937. Colocado na Secção Central, em Lisboa, e gozando da total confiança de Barbieri Cardoso, foi chamado a participar na Operação Outono, tendo sido enviado a Roma várias vezes com o objetivo de “controlar” a dupla Ernesto Bisogno/Mário de Carvalho. De uma das vezes, foi na companhia de Barbieri e de Pereira de Carvalho, a parelha que desde 1962 dirigia o nevrálgico serviço de informações. Numa segunda viagem a Roma, foi secundado por um sub-inspector, de nome Ernesto Lopes Ramos, que de certo modo entrara na PIDE pelas suas mãos.
Nascido nas Caldas da Rainha, em 1933, formado em Direito, concorrera aos serviços noticiosos da RTP nos seus primórdios. Hábil e destemido, Ernesto Lopes estagiara na CIA e era um operacional de mão-cheia, razão porque foi adstrito a Casaco. “Tínhamos de assegurar-nos, sem margem para quaisquer dúvidas, de que realmente o Mário de Carvalho dispunha, como afirmava, de acesso íntimo ao general”.
As eventuais dúvidas desvaneceram-se por completo. Carvalho passou a trabalhar ativamente para a polícia, que lhe atribuiu o nome de código de “Oliveira”, com uma remuneração de dez mil escudos mensais (50 euros). Com Carvalho a contar para Lisboa tudo quanto Delgado dizia, urdia e fazia, a PIDE decidiu “passar à fase seguinte, ou seja, ao contacto com o próprio general”.
A ideia foi gizada por Barbieri e Pereira de Carvalho. Casaco possuía todas as qualidades para o tentar, mas apresentava um senão insuperável: Delgado conhecia-o perfeitamente - “nos anos 50, quando o general exercia o cargo de director-geral da Aeronáutica Civil, eu chefiava o posto do aeroporto de Lisboa, tendo tido, então, inúmeros contactos com ele”. Eliminada a hipótese Casaco, a escolha acabou por incidir em Ernesto Lopes.
Encontro em Paris no Hotel Caumartin
Em dezembro de 1964, Casaco e Ernesto Lopes voaram de novo até Roma, donde tomaram um avião para Paris, com uma missão particularmente arriscada: “Manter um encontro `conspirativo' com Humberto Delgado.” A entrevista teve lugar no dia 27 de dezembro, no Hotel Caumartin.
O contacto, a que estiveram presentes Mário de Carvalho e o professor Emídio Guerreiro, ambos colaboradores do candidato às célebres eleições presidenciais de 1958, foi um êxito. “Mário de Carvalho apresentou Ernesto Lopes ao general como Ernesto de Castro e Sousa, nas supostas qualidades de advogado, oposicionista e recém-chegado de Portugal. E aí combinado o encontro de Badajoz, entre Humberto Delgado, Mário de Carvalho, Ernesto de Castro e Sousa e alguns 'militares' portugueses das fileiras da Oposição Democrática.” A data exacta viria a ser fixada mais tarde.
No dia imediato, 28 de dezembro, o general apareceu inesperadamente no Hotel Commodore, onde se haviam hospedado os dois homens da PIDE. O objetivo era entregar “pessoalmente a Ernesto Lopes um maço de cartas dirigidas à Drª. Alcina Bastos”. Era a prova provada de que Castro e Sousa - aliás Lopes Ramos - “havia, efetivamente, granjeado a confiança pessoal de Delgado”.
O sucesso da reunião de Paris permitiu consolidar o projeto delineado pelo estado-maior da PIDE. Ou, mais rigorosamente, por Barbieri e Pereira de Carvalho. Com efeito, o diretor-geral, Silva Pais, “discordava das linhas gerais do plano, não participando, via de regra, das conversas travadas sobre o assunto”. Apesar de ocupar o topo da hierarquia, Silva Pais “deixava-se intimidar um pouco perante o Barbieri. Este era muito mais culto e inteligente do que o Silva Pais, que se sentia inferiorizado”. Ainda por cima “com os serviços secretos na mão”, Barbieri era quem, na altura, “assumia o papel principal” na organização, “acolitado por Pereira de Carvalho, o verdadeiro n°2”, enquanto Silva Pais “havia sido relegado para funções quase marginais”.
Mas em que consistia, afinal, o plano? “Raptar o general e levá-lo clandestinamente para Portugal, para lhe ser dada voz de prisão e responder em tribunal por 'actos de terrorismo'.” A ideia de Casaco, como haveria de declarar em Madrid logo após o 25 de abril, era “cloroformizar o general”, por forma a adormecê-lo, transportando-o de seguida “na mala do automóvel pela fronteira de S. Leonardo”.
Casaco nega que a morte do general fosse o objetivo do plano, pelo menos tal qual lhe foi transmitido. Muitos anos depois, quando o caso subiu a tribunal, a acusação haveria de considerar que “o objetivo central” da direção da polícia era o de “reduzir” o general “à não atuação, quaisquer que fossem os meios necessários para tanto” - o que incluiria, obviamente, a possibilidade da liquidação física. Esta tese, contudo, não foi acolhida pelos juízes do Tribunal Militar. Na sua apreciação, a morte não figurava no plano traçado, que visava, outrossim, “tentar raptar e prender” o general, “trazendo-o para Portugal”.
Do ponto de vista legal, a detenção de Delgado justificar-se-ia, segundo Casaco, “por ter sido condenado pelos tribunais portugueses pelo grave crime da prática de terrorismo, tentado em Portugal por sequazes seus, oriundos do Brasil” - referência a um alegado projeto de “fazer ir pelos ares alguns postes de alta tensão e o comboio 'rápido' Lisboa-Porto, próximo de Alfarelos”.
Brigada escolhida ou imposta a Casaco?
A última fase da Operação Outono iniciou-se com a convocação de Casaco, já em Fevereiro de 1965, ao gabinete do diretor-geral. Presente o triunvirato da PIDE, ficou determinado, segundo o acórdão do tribunal, que “Casaco chefiaria a brigada” e que “assumiria o falso papel de coronel do Exército” ido ao encontro do general. Diferente é a versão do inspetor: “Fui incumbido de acompanhar e proteger a brigada que iria tentar deter o general em Badajoz, no dia 13.” A escolha foi justificada pelo facto de o considerarem “pessoa capaz de efetuar essa proteção, dado gozar de grande influência junto das autoridades militares e civis das províncias de Cáceres e Badajoz e, especialmente, dos altos comandos policiais de Madrid”.
Casaco prossegue: “Disciplinadamente tive de aceitar a missão, mas não deixei de chamar a atenção dos meus superiores para os perigos que implicitamente acarretaria tão perigosa incumbência, porque seria extremamente arriscado fazer passar pela fronteira espanhola o general sem que este protestasse, o que poderia provocar um conflito não só entre as duas polícias mas, principalmente, entre os governos de Portugal e de Espanha.”
A brigada seria completada pelo subinspector Ernesto Lopes Ramos - o elo de contacto com Delgado - e pelos chefes de brigada Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro, ambos de 44 anos. Tienza entrara para a PIDE em 1947 e era o motorista de Casaco. Nascido em Goa, Casimiro Monteiro só fora admitido na PIDE em novembro do ano anterior. No seu cadastro figuravam vários crimes de sangue, particularmente na antiga Índia Portuguesa. “Era um facínora”, reconhece Casaco; “matava a torto e a direito. Mas era um patriota exacerbado”.
Quem escolheu estes dois agentes? O Tribunal foi perentório, ao sentenciar que Tienza e Casimiro Monteiro “foram escolhidos” por Casaco. Este, porém, diz que a brigada lhe foi “imposta pelo triunvirato”. Mais: os restantes elementos “tinham sido instruídos” na sua ausência - instruções que, de resto, não lhe “foram dadas a conhecer”.
Casaco aceitou a “diligência” de que foi incumbido, apesar de, sublinha, a ter considerado “uma estupidez, tanto mais que Delgado não oferecia qualquer perigo, por ser um homem gravemente doente (há mais de um ano que derramava pus do ventre, de forma quase incontida, e que os médicos em Roma nada puderam fazer contra este mal, dando-lhe o máximo de um ano de vida)”. Além de que, em sua opinião, ele “não dispunha de qualquer crédito político ou revolucionário e, em consequência, mais tarde ou mais cedo, se apresentaria às autoridades”, até porque estava “sem fundos para a sua subsistência e da sua amante”.
A armadilha de Badajoz
A brigada largou de Lisboa na tarde de 12 de fevereiro. Monteiro e Tienza seguiram no carro deste, um Opel verde e creme, com a matrícula EI-44-39; Ernesto Lopes e Casaco foram na viatura do primeiro, o Renault Caravelle IA-65-40. As viaturas e os agentes tinham documentação falsa. Casaco utilizou um passaporte a que já recorrera numa viagem ao Brasil, em nome de Roberto Vurrita Barral, um cidadão da Guatemala; Ernesto Lopes serviu-se de documentos passados em nome de Ernesto de Castro Sousa, o tal falso advogado; Tienza seguiu como se fosse Filipe Garcia Tavares; e a Monteiro foi dada a falsa identidade de Washdeo Kundaumal Nilpuri, da ilha de Jersey.
O grupo passou a noite numa pensão em Reguengos de Monsaraz. Na manhã seguinte os dois carros tomaram a direcção do posto fronteiriço de S. Leonardo, chefiado pelo agente da PIDE António Gonçalves Semedo. Antes, substituíram as placas de matrícula de ambos os veículos por outras, falsas. Em S. Leonardo, Casaco ordenou a todos os funcionários que “deixassem as suas armas de serviço no posto fronteiriço”. Casaco assegura que “as armas foram depositadas e guardadas” pelo chefe do posto - o que foi formalmente negado, em tribunal, pelo próprio António Semedo.
Já no lado espanhol da fronteira, verificou que, no carro do Tienza, “se encontravam um garrafão, um saco com cal, uma picareta e uma pá”. Admirado ao ver o ácido sulfúrico e a cal viva, Casaco terá perguntado a Tienza que material era aquele, respondendo-me o próprio que se “destinava a umas obras que estavam em curso, na sua casa em Sintra que não tinha tido a oportunidade de o retirar do carro”. Este pormenor não condiz com uma declaração de Casaco em Madrid, em 1974, segundo a qual “ignorava totalmente a existência daqueles produtos destrutivos” até ao momento em que os corpos foram enterrados.
Para o projetado encontro com Delgado, foi escolhido um local ermo, perto da estrada principal que liga Badajoz a Olivença. Foi aí que, cerca das 15 horas, surgiu a viatura de Ernesto Lopes, transportando o general. No assento da retaguarda, uma personagem não prevista no elenco idealizado pela PIDE: Arajaryr Campos, a secretária do general. Carioca, de 34 anos, divorciada, Arajaryr Canto Moreira de Campos era a dedicada colaboradora do general, que acompanhava para todo o lado desde há cinco anos. A apreciação de Casaco é deveras pejorativa, referindo-se sempre a Arajaryr como “a amante brasileira”.
A aguardar a chegada do general estavam, ansiosos e impacientes, os outros três elementos da PIDE, supostos “oficiais do Exército português anti-situacionistas”, liderados por um imaginário coronel: Casaco.
Monteiro dispara sobre Delgado...
É aqui que a versão do ex-inspector mais difere dos factos dados como provados pelo tribunal. Segundo o acórdão, Casaco estaria no interior da viatura de Tienza, a uma distância de cerca de dez metros do local onde se deteve o carro em que viajava Delgado. “Isso é falso”, protesta Casaco, que assegura que não só não estava no carro como ficara “a cerca de 120 metros de distância”, com o objetivo de “impedir qualquer possível intervenção das autoridades espanholas, pois o general poderia ter alguém a protegê-lo ou estar a ser seguido”.
Continuando a citar o texto judicial, Rosa Casaco - que se passava por um coronel que Ernesto Lopes prometera trazer de Lisboa - saiu do carro e dirigiu-se ao encontro do general. Mais lesto, Casimiro Monteiro, que já estava fora do veículo, tomou a dianteira e, ao aproximar-se de Delgado, empunhou uma pistola e disparou sobre o general. O revólver, de fabrico francês, de modelo Unique, estava munido de um silenciador e não fazia parte do armamento distribuído ao pessoal da PIDE, de marca Walther.
Atingido na cabeça, Humberto Delgado teve morte imediata. Casaco nega que se tenha dirigido ao general, até porque este o “conhecia pessoalmente”, desde os tempos em que trabalhara no aeroporto de Lisboa. Mantém a versão de que assistiu a tudo de longe: “Voltando a minha atenção para a estrada, ouvi um disparo seco e vibrante, como se fosse uma pistola de pressão de ar, vindo do alto da colina, e gritos agudos femininos. Verifiquei, então, que o Casimiro Monteiro estava abatendo o general.”
Estaria Delgado armado, como alguns membros da brigada viriam mais tarde a sustentar? “Eu não vi arma nenhuma.” Já o dissera, de resto, em Madrid: “O general não estava armado, tendo disso absoluta certeza.”
... e Tienza mata Arajaryr
Testemunha impotente de um assassínio a sangue frio, a secretária, descontrolada, desatou aos gritos. “Assustado”, prossegue Casaco, diz que correu coxeando para o topo do monte e gritou: “Calem-me essa mulher”. Após o que também Arajaryr foi mortalmente baleada. Segundo o tribunal, o autor do segundo homicídio voltou a ser Casimiro Monteiro. Casaco desmente em absoluto e acusa - tal como fizera na declaração de Madrid - o seu ex-motorista, Agostinho Tienza, o que até levou Ernesto Lopes a gritar “Eh pá, não me fodas o carro!”, aparentemente mais preocupado com a viatura do que com as mortes. A arma era do mesmo modelo que a utilizada por Monteiro.
“Perante a consumação deste duplo crime”, prossegue, “manifestei, de imediato, a minha veemente repulsa por tal acto tão miserável e, também, por ter sido enganado pelos meus superiores. Admiti, imediatamente, que o Monteiro e o Tienza iam predestinados e preparados para tão nefando ato, uma vez que ambos eram portadores de pistolas com silenciadores.”
Casaco garante que interpelou os seus subordinados, ao que o Casimiro Monteiro respondeu: “O Sr. Inspetor não se meta neste assunto! Isto não é nada consigo”, ao mesmo tempo que se mostrava “ameaçador, com a pistola na mão “. Mais tarde, Casaco terá indagado “junto dos elementos da brigada quem tinha dado a ordem de execução”, mas não obteve “qualquer resposta”. Cedo se convenceu que também Ernesto Lopes “nada sabia quanto à intenção de matar, porque os seus estados de espírito e de indignação eram idênticos” aos seus.
Inúmeras contradições
Os dois cadáveres foram, então, metidos nas bagageiras dos automóveis. Aqui surge mais uma contradição. Para os juízes, ambos os corpos foram colocados na mala do Opel de Tienza, levados por Monteiro e Casaco. Este nega: “Eu tinha lá força para isso! Tinha acabado de ser operado a uma perna... Quem os transportou foram o Casimiro e o Tienza, cada um para sua bagageira.”
Os corpos acabaram por ser sepultados numa vala natural, num local a cerca de seis quilómetros a sul de Villa Nueva del Fresno. O acórdão não o confirmou, mas Casaco não tem dúvidas em afirmar que os corpos foram previamente regados com ácido sulfúrico e cal viva. As roupas e os documentos pessoais das vítimas “foram queimados, posteriormente, noutro local”.
Em face do adiantado da hora, o grupo pernoitou na localidade espanhola de Aracena, tendo reentrado em Portugal na manhã seguinte, pela fronteira de Vila Verde de Ficalho. Pereira de Carvalho terá sido o primeiro responsável da PIDE a ser informado do resultado da missão. Casaco diz que foi pelo telefone, a partir da pousada de Serpa, onde a brigada almoçara. O acórdão sustenta que foi pessoalmente, na noite de dia 14, na residência de Pereira de Carvalho, em Lisboa.
Na manhã do dia seguinte, já na sede da PIDE, os seus três dirigentes máximos ouviram um relato completo do que se passara. “Todos eles manifestaram surpresa, em particular o major Silva Pais, que ficou aterrorizado.” No final da reunião ficou estabelecido que seria guardado o mais absoluto silêncio sobre o assunto. Não sem que, antes, tenha sido determinada a destruição de todas as provas suscetíveis de incriminar a PIDE no duplo homicídio - desde a documentação (verdadeira e falsa) utilizada até às duas viaturas.
Nova e farta contradição surge neste ponto. Casaco diz que não sabe “exatamente como isso se processou”, mas, tanto quanto pôde apurar, “essa destruição terá tido lugar numa quinta próxima de Sintra, previamente alugada”. O acórdão, contudo, é taxativo e acusa Rosa Casaco de ter tomado a iniciativa da destruição, seja dos automóveis, seja da maior parte da documentação.
Qual a justificação que Casaco apresenta para tantas e tão graves diferenças entre a sua versão e a sentença judicial? Desde logo, os mais de trinta anos que passaram sobre os acontecimentos e os seus inevitáveis efeitos sobre a memória de um octogenário. Aduz, por outro lado, que a sua “perturbação” no momento do crime “foi grande, o choque emocional tremendo, daí qualquer confusão que tenha surgido” no seu espírito. Considera, finalmente, que durante o julgamento todos o acusaram. “Era fácil descarregar tudo para cima de mim, porque eu não estava presente, não me podia defender”. Guardadas as devidas proporções, conclui que“as principais vítimas em todo este processo foram Humberto Delgado e... ele próprio.
O telefone toca duas vezes
Uma semana depois do crime, Casaco recebeu uma chamada telefónica de Badajoz. Era Manuel Pozo, o chefe da polícia daquela província espanhola e velho amigo, que pedia “ajuda na identificação de uns passaportes e de uma bagagem abandonada no Hotel Simancas” - o mesmo onde Delgado dormira a sua derradeira noite. Com a indispensável autorização de Silva Pais, e ainda que “bastante contrariado”, Casaco rumou a Badajoz no dia 20 de fevereiro. As suspeitas confirmaram -se em absoluto: “A documentação, as roupas, bagagens e uma bolsa de plástico com ligaduras cheias de pus pertenciam ao general e à sua amante.”
A 25 de abril, o telefone voltou a tocar, desta feita a partir de Madrid. Na linha, um outro amigo espanhol, general Eduardo Blanco Rodriguez, diretor da Dirección General de Seguridad, dizendo que “tinham aparecido”, na véspera, “os esqueletos de um casal nas proximidades de Villa Nueva del Fresno e que se suspeitava teria sido obra de um grupo de portugueses que atravessou aquela fronteira no dia 13 de fevereiro”.
Os cadáveres haviam sido localizados junto a um caminho conhecido por Los Malos Pasos, que conduz à fronteira portuguesa. O chefe da secreta espanhola solicitou a Casaco que “investigasse a quem pertenciam” as matrículas registadas no posto fronteiriço espanhol. A resposta foi dada meia hora depois: “Telefonei ao general referindo que as matrículas indicadas pertenceram a um camião e a um táxi, ambos fora de circulação há muitos anos.” Perante “tão insólito” facto, o general Blanco Rodriguez pediu ao amigo português que fosse pessoalmente a Madrid “apresentar explicações”.
“Menti descaradamente”
Posta a questão à hierarquia da PIDE, esta concordou com a ida à capital espanhola, com o fito de “confirmar que a polícia portuguesa nada tinha a ver com os corpos aparecidos”.
Em Madrid, as autoridades já não tinham dúvidas: os cadáveres em causa eram mesmo do general Delgado e da secretária Arajaryr. Alarmada com as imprevisíveis consequências de um crime político daquele jaez, perpetrado no seu território, a DGS espanhola dispensou um acolhimento muito especial ao enviado da PIDE. “Fui recebido num amplo salão pelo general Blanco, pelo subdirector-geral, pelo chefe dos Serviços Secretos daquela corporação, Vicente Reguengo, e pelos chefes das 'secretas' dos três ramos das Forças Armadas espanholas.”
A seleta assistência parecia ter uma ideia já formada sobre a autoria dos dois crimes. “Notei que todos aqueles senhores estavam convencidos que o duplo assassínio tinha sido obra da polícia portuguesa. Tive dificuldade em convencê-los de que teria sido ação de terceiros, ou seja, um saldar de contas entre grupos oposicionistas rivais” - a versão oficial inventada e posta a correr pelo regime de Lisboa.
A reunião de Madrid esteve longe de ter sido agradável para o inspetor português. “Fui submetido a um interrogatório implacável durante várias horas. Consegui convencer os presentes que se iria proceder a exaustivas diligências em Portugal para se tentar descobrir quem seriam os ocupantes dos dois carros suspeitos. Devo dizer que passei um mau bocado, por ter que mentir descaradamente diante daquela assembleia, alguns deles meus amigos.”
No íntimo, verberou os seus superiores por não terem “tido a coragem de se justificar diante das autoridades espanholas, fugindo às suas responsabilidades por incompetência e cobardia”, empurrando-o “para a boca do lobo”.
Desde então, admite, passou a manifestar “uma irritação maior” perante a “troika” dirigente da PIDE, por o terem envolvido no crime que considerou “inútil, contraproducente e disparatado, por terem transformado o general num mito que iria ser glosado por toda a oposição durante anos”.
Na sequência da convocação de Casaco a Madrid, o tenente-coronel Blanco Rodriguez veio a Lisboa a 7 de maio. O chefe da DGS espanhola discutiu com a direção da PIDE uma articulação entre as duas polícias em torno do escaldante crime. Com o mesmo objetivo, Barbieri Cardoso voou até Madrid em 18 de maio. A sensação de Rosa Casaco é que “as autoridades espanholas não ficaram completamente convencidas” pela argumentação aduzida pela PIDE, ou seja, que nada tivera a haver com o duplo assassínio. Convencidas ou não, o facto é que “só vieram a saber a verdade dos factos depois do 25 de abril de 1974”.

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