Carta ao meu Pai:
O calendário avisa-me que faltam 2 dias para tu fazeres 61 anos. Cada dia que passa não consigo deixar de perguntar se estarás orgulhoso de mim. Tendo eu muitas dúvidas sobre a parte metafísica da existência - são muitas mais do que as certezas - gosto de pensar que me vês. Gosto de pensar que me proteges. Gosto de me aninhar na tua memória como fazia no teu corpo quando era um miúdo. Gosto de me lembrar de ti. Gosto de, nos momentos de maior dor, pensar em ti e no que tu farias na minha posição. Tendo tu partido quando eu era muito novo, não gosto de confessar que não me lembro da tua cara. Que não me recordo de como tu eras. Odeio-me por só ter a memória do teu corpo fustigado pela doença na cama do IPO-Lisboa. São muito mais memórias contadas do que propriamente minhas, as que tenho de ti. Fazes me muita, muita falta. Mandasse eu nisto e haveria um decreto dando imortalidade aos pais enquanto os filhos não se formassem como pessoas e outro dando aos filhos a imortalidade possível para que nenhum pai visse partir um filho. Dizia outro dia que é muito mais duro um pai ver partir um filho do que o contrário. É verdade. Mas é muito duro ficar sem um pai. Sem um exemplo. A tua conduta, para mim, é um exemplo. Gostava que falasses novamente com a Mãe. Que a ajudasses a suplantar isto tudo. Muitas vezes faltam-me forças. E é a ti que as vou buscar. O Nuno praticamente deixou-nos, está distante de nós, mas tu saberás disso não é? Ajuda-o também. O filho em quem tinhas um orgulho desmesurado ás vezes deixa-te ficar mal. Aquele que só viste nas suas capacidades mentais brutais e de quem te diziam que seria um génio como um num milhão está "normalizado" pela vida. Muitas vezes recordo as nossas viagens para casa onde fazíamos pequenas brincadeiras como batalhas para ver quem era mais rápido a fazer uma conta de cabeça. Lembro-me de ti em momentos muito básicos, como a primeira vez que me levaste à bola. Benfica 5 - Beira Mar 0. Outro dia, uma pessoa que muito admiro o Joaquim, deixou me aqui a ficha do jogo. Foi engraçado recordar o momento fotográfico que tenho de sair do nosso carro, correr para ti, para as tuas pernas e gritar bem alto: "Hoje damos 5!!!" naquela alegria própria de um miúdo de 5 anos que vai à bola a primeira vez. Claro que isto é contado pela Mãe. Mas lembro-me de acertar no resultado. Acho que já fiz muita coisa na vida, mas ter acertado nesse resultado é algo muito simbólico para mim, não sei porquê. Lembro-me do teu aniversário de 1992, porque coincidia nessa noite a abertura (ou fecho, não me recordo) do Sevilha'92. Lembro-me também do momento em que o director da tua empresa telefonou lá para casa (onde eu estava sozinho com a avó) a perguntar se já tinhas chegado a casa e como é que estavas. Contou-me também de tinhas ido para o hospital. Isto aos 11/12 anos, não me recordo. Nunca dei um abraço tão apertado a alguém como quando te vi chegar a casa, nessa noite. Foi também a noite em que percebi que estavas doente. Não sabia que essa doença te ia levar. Só o soube quando a ambulância te foi buscar para o teu internamento. Lembro-me de ter dito à Mãe que estarias melhor num hospital do que em casa. Mas na altura não sabia. Pensava que ias ficar bom em pouco tempo. Lembro-me da ultima visita que te fiz ao IPO. 9ª cama do 5º andar. Foi no domingo antes de a Morte te levar. Quase que premonitoriamente passaste a hora inteira a dar me conselhos. Fizeste me prometer que nunca me meteria em drogas. Que nem sequer iria fumar. Que me iria sempre portar bem. Que acontecesse-se o que acontecesse, me irias sempre amar. Despediste de mim com um beijo. Lembro-me de ter tido vontade de ir à casa de banho. Lembro me da Mãe não me ter deixado voltar a entrar no teu "quarto" para ir à casa de banho, porque estarias a chorar. Não sabia que era a ultima vez que te via. Lembro-me de saber quando a Mãe parou o carro na CREL (porque ia ter com o Chico) quase que adivinhar o que ela me tinha para contar. Contou a um miúdo de 12 anos que ele acabara de ficar sem Pai nessa madrugada. Lembro me de ter ido para casa da Alexandra. De ter sido o marido dela a primeira pessoa a dar-me os pesâmes. A mim. A um miúdo de 12 anos. Se eu quiser, basta-me fechar os olhos que volto a estar sentado naquela cadeira, naquela casa de Telheiras onde vi o primeiro anoitecer sem ti. Não há dia em que eu não pense como te sentes em relação a mim. Se estarias bem ou mal disposto comigo se aqui estivesses. Ás vezes voltas para mim em sonhos. Sonho contigo, como se o meu subconsciente me contasse que afinal não tinhas partido. Não foram uma nem duas as vezes em que vendo alguém parecido contigo na rua, pensava que eras tu. É a minha mente a querer ver que tu não partiste. No meu coração nunca partirás. Aos meus filhos vou lhes contar as façanhas do Avô. E vou lhes dizer sempre o que tu me disseste na ultima vez que nos vimos. Que aconteça o que acontecer, os amarei sempre. Espero ser bom pai o suficiente para que eles me digam aquilo que te digo sempre: Amo-te, Pai!
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